Viridiana (1961) - Crítica
- João Marcos Albuquerque
- há 6 dias
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Atualizado: há 2 dias
A FORMA COMO FACHADA
Dividido quase simetricamente em duas metades, o filme apresenta na primeira parte a jovem Viridiana como uma figura devota, enclausurada em seu ideal cristão de pureza e abnegação. Mas logo esse idealismo se choca com a realidade corrupta: seu tio, símbolo da aristocracia falida e predatória, a subjuga com manipulações psicológicas, desejos frustrados e jogos morais perversos. Nessa dinâmica, Buñuel expõe com brutal clareza o quanto o desejo e o poder podem se esconder sob a máscara do afeto, e como a fé, quando desligada do mundo real, torna-se instrumento de dominação ou autoengano.
A segunda metade do filme gira em torno do projeto de redenção de Viridiana: acolher os miseráveis, fazer do casarão um refúgio de caridade. Mas o que parecia um ato cristão transforma-se em um espelho distorcido da hipocrisia social. Os mendigos que ela acolhe, em vez de corresponder ao ideal de pureza salvável, revelam-se agentes do caos, movidos por forças brutas, irredutíveis à moralidade burguesa ou à psicologia. Não há pureza redentora — há apenas desejo, sobrevivência, violência e delírio coletivo. A lógica do tio retorna, agora de forma multiplicada, quando os mendigos invadem a casa e realizam seu próprio “banquete” sacrílego para, depois, estuprarem Viridiana, espelhando o tio.
A célebre cena da santa ceia é talvez o gesto mais buñueliano de todo o filme: a paródia iconoclasta que não visa apenas o riso, mas o escândalo, o mal-estar e o desmascaramento. Buñuel não critica apenas a igreja ou a burguesia: ele ridiculariza o ideal de ordem, de caridade, de racionalidade moral, mostrando que, em seu lugar, existe um mundo regido por impulsos desgovernados, rituais vazios e simetrias perversas. A mesa, lugar da comunhão e da civilidade, se torna o altar da bestialidade e da inversão – e por isso mesmo é impossível não se lembrar de tantas troças surrealistas aos costumes e etiquetas burguesas à mesa: Pequenas Margaridas (Vera Chytilova), O Fantasma da Liberdade e O Discreto Charme da Burguesia (Buñuel).
Viridiana, nesse percurso, deixa de ser figura de santidade para se tornar símbolo trágico da falência da fé institucional e da ingenuidade salvacionista. Sua bondade, inicialmente moldada por um senso católico de dever e culpa, é desarmada pelas forças que ela não compreende nem domina — forças que Buñuel filma com uma ironia seca, sem ênfase, e essa contenção é o que torna toda a revelação ainda mais cruel. Todos os personagens, em maior ou menor grau, agem movidos por medo, desejo, culpa ou oportunismo.
Ao fim, não resta redenção, apenas uma forma de rendição silenciosa: Viridiana, vencida por tudo aquilo que tentou negar ou controlar, se junta a um jogo ambíguo, com seu primo e uma empregada, numa sugestiva composição final de conivência e resignação. Em Viridiana, Buñuel destrói com maestria as ilusões de pureza — e o faz com imagens memoráveis. O filme é um ritual de profanação onde o sagrado não é apenas negado — é desnudado como farsa. Veja bem: o sagrado é manipulado por Buñuel como farsa, e isso nos é revelado pelo jogo dissimulado que ele estabelece entre forma e conteúdo. Aqui está sua maior crítica à igreja e as estruturas do sagrado como codificadas pela mesma. Buñuel desnuda a imagem sacra e a apresenta como fachada.
O filme começa com uma estética de sobriedade formal — planos fixos, composição clássica do quadro, progressão dramática narrativa — que remete à tradição do cinema "de qualidade" (como satirizada pelos jovens turcos da Cahiers du Cinéma). Buñuel, portanto, adota a linguagem cinematográfica clássica em Viridiana. Mas aos poucos essa estética começa a se tornar dissonante em relação ao conteúdo que veicula: a violência do tio, o abuso psicológico, a culpa católica, a miséria dos mendigos. O espectador se vê confrontado com uma forma que parece estável, mas que esconde sob sua superfície uma instabilidade radical. A forma, assim, é usada como armadilha estética.
Voltemos a cena da Santa Ceia - e como não aludir à esta cena exaustivamente? Buñuel reencena a imagem sacra como farsa grotesca, escárnio. Mas não é um gesto de escândalo gratuito: o que ele parece dizer é que a beleza sacra não purifica por si só; ao contrário, pode servir para ocultar estruturas de violência, de opressão e de hipocrisia. Ou seja: a imagem sagrada é, ela mesma, um simulacro, uma fachada para um mundo onde o sagrado já se esvaziou.
A linguagem cinematográfica clássica — com sua clareza narrativa, sua composição equilibrada, sua montagem invisível — se tornou, com o tempo, um regime de evidência estética. Aprendemos a considerar belo aquilo que se organiza segundo seus códigos. É uma forma de condicionamento perceptivo. Essa linguagem não é neutra. Ela naturaliza valores: ordem, harmonia, clareza, racionalidade, proporção. Tudo aquilo que, por extensão, está associado à ideia de um mundo regido por sentido, por hierarquia estável, por uma forma de beleza moralizada.
O sagrado, especialmente no contexto ocidental católico, não é apenas um conteúdo espiritual: ele é também uma linguagem visual, uma organização da percepção, uma estética da autoridade e da transcendência. A pintura religiosa, a liturgia, os códigos do corpo, a simetria arquitetônica das igrejas — tudo no mundo cristão tradicional está construído sobre uma retórica da ordem e da beleza como mediação do divino. A forma clássica do cinema tem uma profunda ressonância com a estética sacralizada do Ocidente cristão.
Ao reencenar a imagem sacra como perversão, o choque não está apenas no que se mostra, mas no fato de que isso seja mostrado por uma linguagem que tradicionalmente organiza o belo, o elevado, o espiritual. Viridiana é um gesto de desconstrução: profana a linguagem da transcendência usando os próprios meios com os quais essa linguagem historicamente se construiu. A forma clássica, quando aplicada a um conteúdo abjeto, obsceno, insuportável, perde sua inocência. Buñuel usa essa mesma linguagem para mostrar que por trás da ordem há miséria, por trás da caridade há culpa, por trás da beleza há opressão. Buñuel não faz um filme blasfemo pela transgressão vulgar, mas pelo uso radicalmente consciente da forma clássica para encenar o esvaziamento do sagrado.
Ele filma como quem respeita, mas constrói como quem sabota. Buñuel revela a artificialidade dos sistemas que sustentam tanto o sagrado quanto o belo. Em outras palavras: a beleza é, muitas vezes, um gesto de autoridade cultural — e Buñuel, com suas ironias visuais, revela o quanto essa autoridade pode servir para encobrir aquilo que ela deveria denunciar. Em Viridiana, Buñuel não precisa destruir a linguagem clássica para criticá-la (como diversos cineastas modernos farão). Ele a habita e a implode por dentro, revelando o que ela muitas vezes se esforça por ocultar.
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