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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

Sem Ursos - Crítica

Atualizado: 23 de jan.

Não dá para começar a escrever uma crítica sobre um filme do Jafar Panahi sem antes expor que ele é um diretor proibido, pelo governo iraniano, de fazer filmes. Mas mesmo assim ele faz. Vários. E ainda os envia para festivais internacionais, de forma clandestina. Já teve filme que foi parar no Festival de Cannes dentro de um pendrive escondido num bolo, como é o caso da obra-prima “Isto não é um filme” – que é um filme sobre como fazer um filme não podendo fazer um filme. Logo, todos os últimos filmes de Panahi são sobre cinema e, mais especificamente, sobre como fazer cinema estando proibido de fazer cinema. E assim, seus filmes expandem nossa compreensão sobre o que é o cinema, e sobre a relação do artista com sua arte e do artista e sua arte com a política e com a vida.


Agora, sobre Sem Ursos. Vou pegar uma cena específica do filme e dela extrair o que, para mim, é o toque de gênio na obra. A cena em que o (personagem interpretado por) Jafar Panahi tira a "possível" fotografia do casal. Nós não vemos o que o personagem vê, nem vemos a fotografia que ele tirou. Desse momento em diante, o protagonista se vê no centro das questões políticas e sociais daquela comunidade, que pode ser extrapolada e analisada como um microcosmo do Irã. Primeiro comentário autoral de Panahi: temos a câmera no centro do jogo de poder. A câmera como produtora de evidências. Quem manipula a câmera é tido como o detentor da verdade. Temos aqui um comentário autobiográfico feito pelo diretor, que nos remete diretamente a sua situação no Irã. E mais: também nos informa a respeito do poder da câmera no Irã. Do poder que advém do que a câmera mostra e do que ela não deve mostrar. É isso que encurrala o personagem. É isso que aprisiona o Jafar-autor. E aqui entra um elemento da linguagem cinematográfica que Jafar utiliza com maestria rara: o fora de campo.


O fora de campo é tudo aquilo que não está em nosso campo de visão. Existe o quadro/campo, que é o que a câmera nos dá a ver, e o fora de campo, que é o que a câmera não nos dá a ver, mas intuímos por conta do quadro.


Na cena da fotografia, não vemos um dos eventos centrais da narrativa, que é o (possível) casal "ilegítimo" se beijando. Não temos acesso a uma das principais matrizes dramáticas do filme, Jafar nos esconde a evidência. Ao escondê-la, ficamos em um estado constante de suspense e dúvida, pois não sabemos, de fato, o que ele fotografou. Então, dessa forma, Jafar-autor nos coloca ali, no turbilhão daqueles boatos, na pele do personagem-diretor. E nós, como espectadores, estamos ainda mais perdidos que o próprio personagem, ele também um estrangeiro naquela comunidade. Segundo comentário autoral: Jafar nos indica que existe uma verdade, e que essa verdade pertence a determinadas pessoas, de acordo com seus status. Certas verdades têm dono, e esse dono não pode ser qualquer um. Pior ainda quando o dono da verdade é quem manipula a câmera, aquele que detém o dom de narrar pela conjugação de som e imagem. Esse é um dos piores detentores da verdade no Irã.


Já que o fora de campo é tudo aquilo que não está emoldurado pelo enquadramento da objetiva, o fora de campo é o mundo inteiro, exceto aquela minúscula parte de mundo que temos acesso através do enquadramento (é possível realizar essa extrapolação no filme devido ao realismo imposto pela estética e pela própria presença do diretor – falo sobre isso no próximo parágrafo). Assim, Jafar-autor realiza um movimento que é de mão dupla. Por um lado, ele nos joga diretamente para fora do filme, nos arremessa para o mundo ao colocar o evento que é a matriz dramática do filme no fora de campo. Jafar constrói mais uma ponte entre o cinema e a realidade. Terceiro comentário autoral: são eventos como este, eventos que ocorrem diante de determinados olhares, mas não dos olhares do público, que podem definir os caminhos de uma sociedade, e de muitas vidas em particular. Eventos que se dão as escondidas, no sigilo, na privacidade que não pode se tornar público. Eventos que ocorrem longe das câmeras, longe da ficção, da narração e da representação – eventos que ocorrem na realidade imediata do mundo. Mas então Jafar estaria se contradizendo, ao apontar que o cinema não pode dar conta da realidade, e que a ficção é sempre e somente ficção?


Sim e Não. Pois o fora de campo em Panahi assume essa ambiguidade: é tanto o locus da realidade quanto da ficção - pertence tanto ao mundo quanto à diegese. É a partir do realismo construído por Jafar, a partir de seus comentários autorais e de sua estética, a partir de sua própria condição de cineasta clandestino que faz filmes autobiográficos (a presença de Jafar por si só já nos transporta da ficção para o real e vice-versa, pois que interpreta a si mesmo) que Jafar consegue acessar o mundo real. Se este acesso é sempre mediado pela ficção, a sua ficção é também mediada pelo real. O fora de campo em Panahi assume essas duas feições: ficção e realidade. Panahi é um construtor de pontes entre estes dois mundos, ou melhor, ele funde os mundos. Aqui o cinema de Panahi ganha conotações ontológicas.


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