O mundo que conhecemos está em ruínas. O que nos fez chegar até aqui? O que fazer para sairmos dessa? O que nos diz o cinema?
O cinema, como toda arte, produz e reproduz mundos. Catalisador do espírito do tempo, pensa a realidade com a urgência de quem está no meio do turbilhão.
Percebi que, em muitas produções de 2020 e 2021, temos a nossa relação com a natureza no cerne da questão. E de uma maneira bem peculiar: de uma relação de aclimatação, placental, simbiótica. E agora o ponto principal: na maioria das vezes, a relação toma um rumo imanente, em contraste com o transcendente.
Vou pegar, para exemplificar a peculiaridade desta relação, três filmes: Nomadland, February e In the Earth. O primeiro todos conhecem. February é um drama de 2020, e In the Earth é o primeiro terror foda de 2021.
Nomadland nos endereça a seguinte pergunta: quando o mundo que conhecemos desaba, onde nos sustentar? A protagonista, como todos vimos, encontra na comunidade dos nômades e na natureza sua resposta. O filme nos apresenta a protagonista sendo uma nômade por opção, no que tange a questões materiais, mas nômade por necessidade, em respeito a questões metafísicas, ou, digamos, espirituais. Reencontro consigo mesma, busca pela liberdade, comunhão e paz de espírito: todos tem a natureza como eixo.
Em February, maravilhosa produção búlgara de 2020, acompanhamos a vida de um mesmo homem do campo em três etapas de sua vida: infância, início da vida adulta e velhice. As três etapas se iniciam apresentando o homem em uma espécie de conflito silencioso consigo mesmo e com seus semelhantes, sentindo-se isolado, melancólico, estrangeiro. E as três etapas sempre terminam com o homem encontrando sua paz na comutação com a natureza, numa espécie de êxtase místico.
In the Earth, o tão esperado retorno do cultuado Ben Wheatley para o genero terror, vemos cientistas buscando desvendar os mistérios da natureza, mas quanto mais avançam em suas pesquisas, mais flertam com o oculto.
Aqui temos uma reviravolta na forma como a natureza costuma ser representada no cinema. E na forma como os filmes Nomadland e February também trabalham o tema. Outra reviravolta, original em correlação com o senso comum, é da relação entre ciência, tecnologia e o dualismo natural/artificial.
Todos filmes citados acima trabalham a relação humano/natureza - sendo In the Earth o único a trabalhar a natureza como um ente transcendente. E aqui temos o ponto e o contraponto do texto, que farei convergirem para o mesmo destino.
Dualismo humano/natureza. Criada na modernidade, fruto dos primórdios da ciência moderna, nos separou do reino natural, criando uma hierarquia entre humanos, dotados de razão, e natureza, local dos instintos primitivos e da animalidade. Este dualismo nos impulsionou a termos domínio sobre o meio natural, e nos deu a impressão - errada - de que temos poder sobre ela. Agora estamos onde estamos, à beira do abismo. Se Nomadland e February nos mostram a natureza como mãe natureza, e trabalham de certa forma com a ideia de reconciliação ou amálgama entre as partes, In the Earth nos apresenta a natureza como uma espécie de Gaia maléfica, e que sempre irá nos sobrepujar e nos manter sobre seu domínio, nos forçando à resignação e à idolatria para sobrevivermos. Nesta última concepção, Gaia sempre irá nos transcender - é o que testemunhamos, dentre muitas formas, com o aquecimento global, tsunamis, terremotos, e demais cataclismas.
Se Nomadland e February nos apresentam o humano experienciando uma comutação com a natureza, In the Earth nos mostra que essa comutação não existe, ou que se existe, se trata, na verdade, de uma relação assimétrica de poder, mas desta vez, com o poder pendendo pro lado da natureza.
Nomadland
Direção: Chloé Zhao
Roteiro: Chloé Zhao e Jessica Bruder
EUA - 2020 - 1h 47min
Avaliação:
4/5
Février
Direção e Roteiro: Kamen Kalev
Bulgária e França - 2020 - 2h 05min
Avaliação:
4/5
Maldição da Floresta
Direção e Roteiro: Ben Wheatley
Reino Unido - 2021 - 1h 47min
Avaliação:
3/5
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