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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

Manto de Gemas

Atualizado: 26 de out. de 2022

Cinema é filme mais espectador. Cada filme se relaciona com o espectador de um jeito. Mas existe um padrão, o convencional. Portanto, quando falamos de filmes convencionais, estamos falando também de espectadores convencionais. Quero dizer que temos, como espectadores, uma determinada postura perante os filmes que se repete, e que se torna padrão. Normalmente, quando achamos um filme chato, pode ser por conta do não encaixe entre a obra em si e o que desejamos de um filme como espectadores. O padrão é termos uma postura sempre atenta ao assistir uma obra, e quanto mais concentrados ficamos ao longo do filme, mais costumamos gostar da obra. Filmes que nos despertam este poder de atenção costumam ser convidativos. São filmes que nos contam uma história, e estão preocupados com a nossa compreensão dela. Vão dando pistas, detalhes, nos conduzindo com cuidado. Nos tratam como um convidado de uma festa a qual não conhecemos os demais convidados, mas como um bom anfitrião, vai nos apresentando um por um. Mas nem todo cinema busca esse tipo de relação com o espectador. Há filmes que buscam modificar o estado de espírito, deixando o espectador mais meditativo, menos atencioso, mais disperso, até sonolento. Há outros que desejam deixar o espectador enfurecido, puto, com raiva. Normalmente, quando o filme foge da relação costumeira, o primeiro impulso é o de detestarmos a obra. Porém, são obras assim que necessitam ser pensadas e repensadas – não por conta de sua narrativa hermética de difícil acesso, mas por se tratar de uma obra conceitual.


Manto de Gemas trata mal o espectador, no sentido de não ser um bom anfitrião. Ele nos joga cenas, imagens, conversas que não compreendemos – ou entendemos bem pouco. Ele nos coloca em uma posição vulnerável e desinformada, coisa que odiamos como espectadores acostumados ao privilégio de permanecermos sentados recebendo as informações sem muito trabalho. Ele vai se desenvolvendo e pouco parece se importar com nosso entendimento do que está ocorrendo. Ele não nos instrui, não nos explica, somos apenas colocados como observadores de uma trama que já existia antes de nós, e que vai continuar a existir depois de nós. Na verdade, o filme parece existir independente de nós como espectadores. E daí, para refletirmos sobre um filme desses, é preciso refletir sobre nosso papel como espectadores, e pensar no porquê a diretora quis nos tratar desta forma.


Nestes momentos em que o cinema se mostra deveras conceitual, me recordo, sempre, do mictório de Duschamp. O mictório, em si, não é nada mais do que um mictório. Porém, quando Duschamp o coloca no contexto de uma obra de arte, tudo muda, e o mictório se torna uma obra de arte conceitual que questiona a ontologia da arte.


Certos filmes devem ser perscrutados sob esse prisma conceitual. O que a diretora pretende ao nos tirar do lugar de conforto como espectadores? Mostrar todo terror e arbitrariedade da sociedade mexicana? Mostrar como a violência independe de nosso ponto de vista e compreensão? Mostrar como o cinema pode ser violento não só com seus personagens, mas também com o espectador?


No início do filme, há um diálogo entre a empregada e a patroa, na qual a patroa deseja ajudar a empregada a encontrar sua irmã, mas esta retruca: “não adianta, você nunca vai entender, você não sabe como as coisas funcionam aqui”. Vejo esta passagem como uma das chaves interpretativas para o papel que a diretora nos reserva como espectadores. Assim como a patroa, somos estrangeiros ali. Espectadores alienados, alienígenas. Nos sentimos intrusos, penetras. E isso é bem desconfortável. Mas por que tratar os espectadores desta forma?


Acredito que qualquer convenção cria um espaço de segurança e privilégio. Ao tratar, na narrativa, de uma realidade totalmente desprovida de ambas as características, me parece inteligente abrir mão de ambas no plano formal. Não seremos agraciados com o privilégio da informação, com o privilégio da contextualização, com o privilégio da psicologização - instrumentos narrativos que acarinham o espectador convencional. Para mostrar uma realidade desprovida de qualquer privilégio, a diretora retira os nossos como espectadores. Para mostrar uma realidade de extrema violência, a diretora viola as convenções para assim violar nossos consensos como espectador.


O que nos resta é a imagem bruta, petrificada, inacessível em toda sua imediaticidade.


O corpo em chamas, o corpo nu à deriva, o corpo embrulhado e inerte. O que nos resta é a verdade do corpo violentado. E para violar o corpo do espectador, viola-se seu espaço de conforto e segurança - seu corpo agora está desprotegido, à deriva, perdido, desnudado e desprestigiado.


Matéria escrita por João Marcos Albuquerque durante a cobertura da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.


Robe of Gems

Direção e Roteiro: Natalia López

Argentina e México - 2022 - 1h 58min

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