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Dr. Strangelove (1964) - Crítica

  • Foto do escritor: João Marcos Albuquerque
    João Marcos Albuquerque
  • 7 de abr.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 8 de abr.



Lançado em 1964, em plena Guerra Fria, numa época em que o mundo vivia sob a constante ameaça da aniquilação mútua, Stanley Kubrick opta por um caminho ensaiado anteriormente, de forma mais discreta, em Paths of Glory: a sátira. Mas aqui seu humor é tão cínico que o riso se torna um gesto incômodo — um espasmo diante do absurdo.

 

A lógica por trás da política de dissuasão nuclear, suas engrenagens militares, sua retórica tecnocrática e seu moralismo ultraconservador são desmontados por uma farsa de proporções cosmológicas - a sátira não se limita ao contexto da Guerra Fria, apontando para algo mais profundo, mais antigo, e ainda tão persistente hoje: a tendência da civilização ocidental a colocar suas próprias invenções (bombas, sistemas, doutrinas) acima da vida.

 

O filme é uma obra de contenção e precisão. Dr. Strangelove utiliza enquadramentos fechados, cortes secos e composições geometricamente rígidas para enfatizar a claustrofobia do poder: salas fechadas, corredores apertados, cabines minúsculas de aviões. A mise-en-scène é marcada pela repetição de planos fixos e pela justaposição entre a gravidade das situações e a incongruência dos diálogos. O War Room, espaço central da narrativa, é um dos cenários mais icônicos da história do cinema: uma arena brutalista onde decisões absurdas são tomadas com a maior seriedade. Kubrick filma o teatro da insanidade institucional.

 

Há três núcleos narrativos: a base aérea de onde parte o ataque nuclear, o avião que carrega a bomba e a Sala de Guerra. Esse tripé constrói uma tensão crescente — ainda que o público saiba, desde o início, que a catástrofe é inevitável. Mas o suspense é substituído por uma sensação de impotência cômica: todos os personagens são incompetentes, fanáticos ou simplesmente insanos. O General Ripper acredita que a URSS está contaminando os “fluidos corporais” dos americanos. O Presidente dos EUA tenta negociar com um líder soviético bêbado. E no centro de tudo, o Dr. Strangelove - que não consegue controlar seu próprio braço a fazer saudações nazistas (me lembrou As Mãos de Orlac, do Robert Wiene) — metáfora viva do passado ainda pulsando por dentro da lógica tecnocrática e racional do presente. O corpo descontrolado de Strangelove expressa a continuidade do fascismo sob disfarces científicos e institucionais, e mostra o tesão que habita o corpo desta elite quando engajados com a pulsão de morte.

 

A ironia do filme é total. Quanto mais racional e estratégico o discurso aparenta ser, mais bizarro ele o é: um protocolo é tão bem planejado que leva o mundo à destruição; e a destruição do mundo se torna motivo de entusiasmo, por conta do grande planejamento de uma nova civilização no subsolo com “reprodutoras selecionadas”.

 

A forma como Kubrick filma é fundamental para o efeito cômico e crítico da sátira, pois enquanto seus personagens vão delirando em espiral, Kubrick mantém sua sobriedade formal. Há um jogo entre os personagens em crise e a forma em equilíbrio absoluto, que gera uma camada metaestética: a mão do autor domina a narrativa enquanto seus personagens vão perdendo o domínio de si mesmos. A medida que Strangelove se excita com a destruição — e seu corpo vai se descontrolando — Kubrick faz o oposto: encena esse delírio com distância, simetria, frieza. Há um distanciamento clínico, e o riso nasce também da precisão com que o grotesco é enquadrado.

 

Para que a sátira funcione, é preciso haver distanciamento: o espectador precisa perceber o desequilíbrio ou o absurdo daquilo que está sendo mostrado — e isso só acontece se a forma o permitir enxergar com nitidez. A encenação precisa ser mais lúcida do que o objeto satirizado. Em Dr. Strangelove, o mundo está fora de controle, mas o olhar de Kubrick está no centro da lucidez. A sátira nasce dessa dissonância entre o que vemos e a forma como vemos. O riso desponta com facilidade porque a forma não corresponde à loucura da situação — e isso revela o descompasso entre a aparência de racionalidade e a concretude do delírio. Quanto mais descontrolado é o mundo, mais controlada é a forma que o apresenta. A mão do personagem Strangelove é o sintoma, e a mão do diretor é a cura. A tensão entre essas duas mãos — a da ficção e a da narração — é o motor secreto desse filme.

 

Dentro da filmografia de Kubrick, Dr. Strangelove encapsula a visão de mundo que Kubrick irá aprofundar em obras posteriores.

 

A razão moderna como força destrutiva será retomada em 2001. É a mesma lógica. Strangelove expõe a loucura por trás do racionalismo: uma cadeia de decisões “racionais” conduz ao fim do mundo. Em 2001, HAL 9000 representa o mesmo colapso: uma máquina criada para proteger a missão humana se torna ameaça — o computador assassina os astronautas ao seguir sua programação com “lógica” impecável. A forma fria, geométrica, controlada da mise-en-scène realça esse paradoxo: é a ordem que gera o colapso.

 

Strangelove mostra como instituições democráticas e científicas reproduzem desejos autoritários. Laranja Mecânica retoma essa crítica, agora sob a forma da psicologia comportamental usada como ferramenta de controle e repressão.

 

Jack Torrance (interpretado por Jack Nicholson em O Iluminado), como Strangelove, é um homem que acelera rumo à loucura enquanto insiste em parecer no controle. A atuação de Jack Nicholson e Peter Sellers (Strangelove) recorre ao exagero, à teatralidade controlada, à transformação do corpo em signo do delírio.

 

Se Strangelove mostra o alto comando militar como uma engrenagem disfuncional e patética, Nascido para Matar mergulha nos bastidores da formação do soldado. Ambos os filmes se interessam não pela guerra em si, mas pelo sistema que a sustenta: seus discursos, rituais, linguagens. O treinamento dos fuzileiros em Nascido para Matar é o complemento direto do War Room em Strangelove: locais de produção da obediência e da loucura.


Mas o maior paralelo dentro da filmografia de Kubrick é com um filme anterior à Strangelove: Paths of Glory. Escrevi sobre a relação entre os dois filmes em minha crítica de Paths of Glory (clique aqui para ler a crítica)

 

Dr. Strangelove é, assim, um filme de afirmação do Kubrick como autor, que antecipa quase todos os temas que irão assombrar sua obra posterior: o fracasso da razão, a violência das instituições, a beleza cruel da forma fílmica de Kubrick diante do caos representado.

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