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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

Crimes of the Future (2022)

Atualizado: 6 de out. de 2022



Toda sociedade deveria funcionar como um organismo saudável: previsível, cada um (orgão) realizando sua função, operando de acordo com o papel que lhe é atribuído, etc. Assim pensam aqueles que desejam manter o status quo inalterado - mantendo as relações de poder intactas. O organismo é esse sistema normalizado, produtivo. Mas, às vezes, surgem tumores, alterações não premeditadas, que causam descontrole, fugindo à regra. O que foge à regra precisa ser submetido novamente a regra - precisa voltar a ficar sob controle.


Em Crimes of the Future, Saul (protagonista) cria, espontaneamente, novos órgãos. Um órgão, por si só, não significa nada. A questão é sempre o organismo. Saul retira os novos órgãos por medo deles constituírem um novo organismo. E aqui nos perguntamos: como se constroem os órgãos e organismos?


Do ponto de vista biológico, a resposta parece ser óbvia: sobrevivência, adaptabilidade. Nossos órgãos são constituídos em acordo com o ambiente. Nosso organismo funciona para e pela adaptação ao ambiente. Nosso sistema digestivo, por exemplo, funciona para digerir os alimentos produzidos em nosso ambiente. Mas nosso ambiente é o mesmo de quando nossos órgãos e organismos foram constituídos? Hoje, quando nos alimentamos, já não estamos ingerindo microplásticos?


Cronenberg disse que uma de suas motivações para fazer Crimes of the Future era a de que ele tinha assuntos pendentes para resolver com o futuro. Seus filmes, em sua maioria, trabalham a relação entre os humanos, suas tecnologias e invenções, e como estas se conjugam e se entrelaçam para constituir as tramas de nossos desejos e traumas. Em Crimes ele consegue criar sua visão de futuro mais distópica e, ao mesmo tempo, a mais esperançosa. E, sem dúvida, a mais radical.


Distópica pois o ambiente nos é, agora, hostil e quase inabitável. Estamos a um passo de não conseguirmos mais nos alimentar com o que antes considerávamos “natural” - como é o caso de Saul. Por isso o final do filme é tão poderoso: pois ao mostrar uma nova concepção de alimentação, na verdade, ele acaba por quebrar a ilusória distinção moderna entre o natural e o artificial, entre natureza e cultura, e como essa dicotomia perde o sentido diante do antropoceno. O natural, agora, é o plástico, elementos sintéticos - é o antropoceno em seu clímax, se alimentando daquilo que ele mesmo criou. Somos os deuses que criamos, agora, nossa própria comida, em laboratórios. Esse é o lado esperançoso da obra, também - de que poderemos conviver com nossas monstruosidades, com toda poluição e destruição que infringimos no mundo. Que não só vamos sobreviver ao mundo inabitável que estamos criando, mas vamos habitá-lo de outra forma.


Porém, esse novo organismo, capaz de digerir sintéticos, foge à norma: ele é um dissidente, rebelde, um risco ao status quo. Ele precisa ser eliminado, controlado, subjugado. Por isso matam o líder do grupo dos comedores de plástico, assim como boicotam a apresentação final de Saul. O novo - a revolução por vir - não pode acontecer, pois acarreta em um inevitável terremoto nas relações até então estáveis de poder. É por isso que Saul deve responder ao “Registro”. É por isso que as técnicas das máquinas assassinam o líder dos comedores de plástico - afinal, a cadeira de alimentação se torna obsoleta no momento em que Saul come a barra de plástico. E daí por diante.


Não há nada mais radical que especular um futuro onde desenvolvemos um novo organismo. Na verdade, a única coisa mais radical que isso seria um organismo sem órgãos, portanto, puro fluxo não determinado, sem funcionalidade específica, sem padrão, sem a possibilidade de ser normatizado - pois que escapa a toda formatação e regimento - e ainda assim vivo e absolutamente livre e aberto a todas possibilidades. Em Crimes, um novo organismo, se do ponto de vista biológico, faz ressoar as alterações que imputamos ao meio ambiente (antropoceno), do ponto de vista político, como toda revolução, precisa ser travada, controlada. E isso ainda é possível enquanto a maioria dos humanos precisam se submeter a cirurgia para modificar o organismo. Contudo, a criança assassinada ao início do filme, e Saul, compartilham do destino comum da humanidade, são protótipos do que está por vir. E aqui mora o grande problema: é impossível eliminar um processo que independe da vontade. Se o mundo está em transformação, nós também estamos, queiramos ou não. O elo é indissolúvel e umbilical. Por mais que os delírios da modernidade, através de suas concepções científicas, filosóficas e políticas, tenham colocado a racionalidade como senhor supremo da natureza, criando o dualismo natureza e cultura, separando o homem do ambiente, a mentira desta presunçosa separação se torna cristalina em Crimes. Cronenberg nos diz que a tecnologia é natural, assim como a natureza é tecnológica.


Cronenberg parece dizer, também, que a revolução é inevitável, por ser ela mesma inerente ao nosso processo de sobrevivência. O Cronenberg de Crimes é, por isso mesmo, otimista. Nesse sentido, dissonante do Cronenberg que conhecemos. Porém, permanece radical em suas propostas e especulações.



Crimes do Futuro (Crimes of the Future)

Direção e roteiro: David Cronenberg

Canadá, Reino Unido e Grécia - 2022 - 1h 47min


Avaliação:

****1/2

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