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Foto do escritorJoão Marcos Albuquerque

Chuva de Julho (1967) - Crítica

Atualizado: há 2 dias

Todo corte é uma abertura. A continuidade busca a sutura desse corte, tenta seu fechamento. A descontinuidade opera pelo princípio inverso: ela esgarça e aprofunda o corte, ampliando a abertura. Chuvas de Julho usa a descontinuidade não para efeito plástico ou brechtiano (Godard, Glauber), mas para efeito mimético - para imitar a vida.


Khutsiev usa aqui uma montagem descontínua que Pialat só ia fazer nos anos 1980. E se em Pialat a descontinuidade bagunça a orientação temporal para nos aproximar dos mundos internos de seus personagens (A Nos Amours), em Khutsiev é a própria contingência da vida que vem à tona nestas aberturas aberrantes.


É a cena onde a protagonista descobre que seu pai morreu. A descontinuidade vem primeiro na interrupção abrupta da trilha sonora, a lá Godard. Mas em Godard a interrupção do som costuma vir acompanhada do corte no plano. Aqui não. Aqui permanecemos no mesmo plano, mas com o encerramento abrupto do som, o plano se transforma por completo. A morte é anunciada. Ela vem do nada, chega de sopetão. Corte. Agora, estamos no interior da residência onde ocorre o velório do pai.


A cena da anunciação da morte, contudo, começa antes. Começa, a bem da verdade, no início do filme, pois que todos os cortes anteriores, e seu acúmulo, ou seja, toda a construção até o momento da morte, são articulados em seu conjunto para que o anúncio da morte tenha o grau de descontinuidade que lhe é exigido. Resumindo: a montagem dita um ritmo, dá uma tonalidade à obra até então. Quando estamos imersos nesse fluxo, vem a notícia da morte, e quebra-se o fluxo.


A cena imediatamente anterior ao anúncio da morte é uma cena onde a protagonista está deitada com seu namorado na cama, trocando afeto, conversando, trocando palavras banais de flerte e charme. E então há o corte que nos leva para um plano aberto da cidade em movimento, com uma música animada que converge com a energia e alta voltagem da metrópole. Esse tem sido o tom do filme ate entao, de forma geral. E de repente, a música desaparece. Silêncio. Um vácuo em pleno agito da metrópole. Uma quebra no ritmo. Entra a voz em off da protagonista conversando ao telefone. Ela descobre que seu pai morreu.


A descontinuidade não vem da montagem em termos de mudança do plano, mas sim do corte no som. Aqui, essa supressão do som tem o mesmo efeito narrativo de um Deus Ex Machina. Ela irrompe do nada e a tudo redireciona. A descontinuidade aqui é a própria morte, é feita da mesma matéria - pura contingência, aleatória, imprevisível. Eu nunca experimentei no cinema algo parecido. Nunca senti a morte no cinema assim, tão concreta, sem sequer ter uma menção visual a ela.


Quando recebi a notícia que meu pai havia falecido, foi exatamente assim. Era um dia comum, eu estava em meu trabalho. Telefone tocou, eu atendi, e naquela ligação me foi revelado sua partida. O corte. A abertura. Não houve sutura. A vida é descontínua.


É essa descontinuidade da vida que é tão lindamente representada por Khutsiev. E só por ele.

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