Baby Invasion (2024) - Crítica
- João Marcos Albuquerque
- 10 de abr.
- 4 min de leitura
O Simulacro como Mise en Abyme
Baby Invasion dá forma à sensação de estar eternamente online, conectado. O filme encena a sociedade hiperconectada como experiência audiovisual total, onde a distinção entre o real e o digital se dissolve num fluxo ininterrupto de imagens, ambientes e estados alterados de percepção. O efeito é deliberadamente hipnótico: não há a sensação do corte, não há pausa, não há tempo fora do vórtice virtual.
Essa fluidez sem direção se converteu no cerne conceitual de minha experiência com a obra: estamos presos a um movimento incessante que, paradoxalmente, nos paralisa. A hiperconectividade não é sinônimo de liberdade, mas de estase. Como na indústria de jogos de tiro em primeira pessoa, indústria que insiste em jogos basicamente iguais em termos de lógica e estrutura, a história do FPS (first person shooter) é uma história de repetição, recompensa, descarga de dopamina. É a imagem como vício. O consumo imagético como performance compulsiva.
A violência exibida no filme é gratuita não apenas porque é desprovida de consequência, mas porque já foi absorvida como forma de anestesia. Os corpos como avatares, os rostos de bebê gerados por IA, os assassinatos ritualizados e a ausência total de motivação me soam como uma sátira à dependência da compulsão como estrutura emocional.
Baby Invasion é um filme-limbo, uma travessia digital onde nada muda, mas tudo se movimenta. Ele expressa, por meio de seus recursos formais — montagem fluida, visual glitchado, performatividade sintética — a sensação de estar em constante aceleração enquanto se permanece parado. Estamos diante de um filme que não avança nem recua: apenas rodopia em seu próprio eixo. Ele carrega no código mesmo da sua construção a impossibilidade da pausa e, por consequência, da reflexão.
Baby Invasion parece seguir a trilha desbravada por The Human Surge, do Eduardo Williams, porém depositando suas intenções num mundo mais niilista e cínico. A estrutura dos dois filmes é movida por um fluxo contínuo, líquido, de imagens e espaços interconectados, onde o tempo é marcado pela deriva.
Em Baby Invasion, essa sensação se intensifica: a própria gramática do jogo é usada como lógica de montagem. Entramos e saímos de ambientes, atravessamos paredes, saltamos entre espaços sem transição lógica ou motivação narrativa. Uma mobilidade sem direção, feita de deslocamentos inertes. Às vezes, temos até a estranha sensação de estarmos dentro da máquina, dentro do canal de conexão, dentro deste portal digital, um espaço caleidoscópico, labiríntico, que lembra até os corredores dos primeiros jogos de FPS – lembrei logo de DOOM.
Ambos os filmes compartilham uma estética da dispersão, onde o mundo se tornou uma malha contínua, onde o digital e o virtual nos imergem num circuito infinito de imagens, tarefas e estímulos. Baby Invasion leva isso ao paroxismo até não sobrar mais sujeito — só avatar, tela, fluxo.
Não há mais, sequer, realidade. Tudo é simulacro. Ao saturar o simulacro, Baby Invasion cristaliza o vazio de um mundo sem âncoras ontológicas, onde o real só existe caso tenha um lastro virtual. É um cinema da era pós-real: quando não sabemos mais o que a imagem está representando ou apresentando.
A imagem, neste contexto, não é mais janela para o mundo (como no cinema clássico), nem mesmo uma construção simbólica do mundo (como nas artes modernas). A imagem deixa de ser representação e passa a operar como ambiente, superfície viva. As imagens são o mundo vivido, não mais sua duplicação. O Simulacro não apresenta ou representa o real: ele é o real que se impõe como o único possível. Daí a indeterminação do que vemos em Baby Invasion: um game hiper-realista? A Realidade gamificada? Daí a indeterminação, até mesmo, do ponto de vista no filme: onde estamos? Quem está olhando? Para onde, para o quê?
Durante boa parte da história do cinema (e da arte em geral) o espectador era concebido como alguém que: vê a imagem à distância; interpreta o que ela apresenta; reflete sobre o que está sendo mostrado. A imagem, nesse modelo, era um objeto a ser contemplado. Mesmo em obras modernas, mais fragmentadas ou críticas, o espectador ainda era tratado como alguém com agência, capaz de organizar o sentido do que vê. Mas essa imagem, que era objeto de visão, torna-se hoje sujeito ativo. O espectador já não vê: ele é visto pela imagem, programado por ela, dissolvido nela.
Ao dizer que o espectador "já não vê", aponto uma mudança de posição subjetiva: o espectador perde o lugar de observador soberano. Ele já não domina a experiência imagética, mas é dominado por ela. Afinal, a imagem coleta dados sobre quem a vê (por meio de câmeras, cookies, rastros) e modula comportamentos com base em algoritmos personalizados. Quando, em Baby Invasion, saímos do “jogo” e adentramos um túnel caleidoscópico, quem é que vemos ao final deste túnel? Parece ser o observador desta imagem (o jogo). E quem observa este observador? Nós, espectadores de Baby Invasion, e ao que parece, a própria imagem (o jogo).
Ao observar o observador, Korine estabelece o simulacro como mise en abyme. Há um jogo de espelhos no filme, onde vemos quem vê. Isso implica, por dedução, que também somos vistos: somos mais uma tela anexa em meio a todo o fluxo.
Esse jogo de espelhos proposto por Baby Invasion é um efeito formal e narrativo, assim como pode ser uma operação crítica sobre a natureza da imagem no simulacro. Ao inserir o espectador dentro de uma cadeia infinita de olhares — onde o jogador é observado, o observador é observado, e a própria imagem parece conter a consciência de estar sendo vista e também observando — o filme dramatiza um tipo de mise en abyme perceptiva, em que a imagem já não é janela, mas vórtice. O simulacro já absorveu o mundo, o reorganizou e o devolveu para nós nessa forma labiríntica, ininterrupta, compulsiva e rodopiante que Baby Invasion parece expressar.
Não sei se Baby Invasion é uma crítica, um elogio ou um sintoma disso tudo. Mas é exatamente essa dúvida que dá um charme ao filme e à filmografia do Korine.
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